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Este memorial compreende as reflexões e registros sobre o projeto Evangelho da Terra - Segundo a Serpente, as práticas de poesia, cena, som e arquivo desenvolvidas entre 2019 e 2021


Silêncio no patriarcado é a voz da cumplicidade. (...)

E quando o sol nasce nós temos medo

ele pode não durar

quando o sol se põe nós temos medo

ele pode não nascer pela manhã

quando estamos de barriga cheia nós temos medo

de indigestão

quando nossos estômagos estão vazios nós temos medo

nós podemos nunca mais comer novamente

quando somos amadas nós temos medo

o amor vai acabar

quando estamos sozinhas nós temos medo

o amor nunca vai voltar

e quando falamos nós temos medo

nossas palavras não serão ouvidas

nem bem-vindas

mas quando estamos em silêncio

nós ainda temos medo

Então é melhor falar

tendo em mente que

não esperavam que sobrevivêssemos

Audre Lorde


Quando eu soube que Araceli Sanchéz, uma menina de 7 anos com ascendência boliviana foi violentada e assassinada brutalmente e que o nome de seus assassinos (filhos de políticos influentes) virou nome de uma das avenidas mais movimentadas do Espírito Santo, fui tomada de um ódio profundo e uma tristeza sem tamanho...


Figura 1 - Foto por Paulo Jares mostra Tuíra Kayapó, quando encostou um facão ao então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, durante o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em Altamira (PA). Disponível em https://amazoniareal.com.br/belo-monte-lico Acesso em 12/08/2019.


    Esse poema dedicado à Tuíra Kayapó[1] pertence ao Evangelho da Terra, foi publicado na quarta edição da Revista Abate em 2017[2] e será publicado novamente na antologia Poetas Negras Brasileiras da Editora de Cultura, a ser lançada ainda esse ano. O motivo destes versos entrarem aqui, é a queda fictícia do monumento, a estátua do bandeirante Anhangüera que está de pé em São Paulo, que além de uma grande avenida, também nomeia uma universidade particular paulistana. Arauto da civilização, Anhangüera é reconhecido, institucionalizado, lembrado. Tuíra, não. Araceli, não.



Um grupo de indígenas da etnia Misak acaba de derrubar (pela segunda vez, em protestos contra reforma tributária do Governo de Iván Duque em abril desse ano) a estátua de Sebástian Belacazár, conquistador espanhol do século XVI. Não é o primeiro nem será o último caso. A queda dos heróis da colonização está insurgindo, literalmente, pelas mãos daqueles que habitam a cidade e veem nela institucionalizadas as violências historicamente cometidas contra seu povo. A cidade como testemunha e museu vivo, narra concretamente a memória. Que memórias e que histórias estarão monumentalizadas, dependerá não da honra ou do brio de seus heróis, mas tão somente do lado em que estão: o lado dos vencedores, ou dos vencidos.

Figura 2. A estátua de Sebastián de Belalcázar, conquistador espanhol do século XVI, jaz depois de ter sido derrubada por indígenas em Cali, na Colômbia. Foto: Paola Mafla. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-04-28/indigenas-derrubam-estatua-de-colonizador-espanhol-em-protestos-contra-as-reformas-na-colombia.html. Acesso em 08/06/2021.

Escovar a história cultural gegen den Strich, significa então considerá-la do

ponto de vista dos vencidos, dos excluídos, dos párias (LÖWY, 2005)

Para aqueles que nasceram depois das batalhas, quase sempre parece natural que tudo tenha ocorrido como ocorreu: que o Brasil se chame Brasil, que Colombo tenha nomeado a Colômbia, que eu esteja escrevendo este memorial em português não em guarani. Natural que os bustos das praças sejam de homens europeus e nunca de mulheres negras, ainda que estas tenham amamentado nações, ainda que estas tenham morrido com tiros na cabeça em defesa da vida e da dignidade dos pobres.



 A placa feita homenagem com o nome da vereadora, Marielle Franco, assassinada em 2016, sendo despedaçada em praça pública pelo vereador Rodrigo Amorim (PSL) não é só um objeto de plástico quebrado: é o ato, repetido e incessante, de banir, esquecer e matar além dos corpos: matar as memórias. A cidade construída por negros escravizados não possui o nome de nenhum dos donos das mãos que se esfacelaram ao construí-la; a cidade cemitério indígena tem erguidos monumentos dos que abriram o caminho do ouro nas matas e estradas através de um derramamento de sangue contínuo há mais de quinhentos anos. Mas não sabemos seus nomes. Índios, os chamam generalizadamente no senso comum, ignorando sua etnia e origem.

Figura 3. Foto reprodução Facebook Rodrigo Amorim. Disponível em https://veja.abril.com.br/politica/candidato-que-destruiu-placa-de-marielle-e-deputado-mais-votado-no-rio/. Acesso em 10/06/2021.


A memória que está a se perpetuar não está somente nos livros de história; está onde pisamos, naquilo que comemos, em como nos referimos aos nossos heróis da pátria e nos nomes que lembramos - ou não. Em nosso caso, se trata justamente do não dito, do não lembrado, dos vencidos insepultos, sem lápide, honra ou registro.


         Aos 17 anos de idade, ingressei no curso técnico em museologia da Escola Técnica Estadual Parque da Juventude, situada no bairro do Carandiru Zona Norte de São Paulo, mais precisamente na Avenida Cruzeiro do Sul, 2.630 meu exemplo radical de ressignificação territorial. A escola é gerenciada pelo Centro Paula Souza sob a Secretaria de Desenvolvimento do Estado de São Paulo e estava em seu segundo ano. Foi implementada como parte da revitalização do território que por muitos anos foi ocupado por uma das mais famosas penitenciárias do país, a Casa de Detenção de São Paulo, popularmente chamada de Carandiru. Conta com um complexo esportivo, cultural e recreativo de 240 mil m² inaugurado em 2003. Em 1999, o Governo do Estado de São Paulo sob a direção de Geraldo Alckimin (PDSB), promoveu concurso público à concepção arquitetônica e planejamento do batizado Parque da Juventude. Entre as propostas, o projeto concebido pela arquiteta paisagista Rosa Kliass conjuntamente ao escritório Aflalo & Gasperini, que desenvolveu os edifícios, foi vencedor[1]. Dos mais de 10 pavilhões, sobraram os prédios dos pavilhões 4 e 7 após a implosão do restante em 1998. A turma do curso anterior à minha construiu um memorial do presídio que lembrava sua história e os 111 mortos na chacina ocorrida em 1992 (lembrada também no Evangelho da Terra assim como a chacina da Candelária, que ocorreu no Rio no ano seguinte). Quando subíamos nas cadeiras podíamos alcançar o teto, que era um forro falso, e as pinturas, piches, lembranças dos presos apareciam, como a segunda pele do prédio. Contra as previsões dos sensitivos que faziam fama na televisão vendo fantasmas e recebendo mensagens de vingança, eu circulava tranquila e inocentemente todas as noites, deitava no parque todas as tardes, e posso afirmar que passei alguns dos momentos mais felizes da vida. Foi ali que me descobri pesquisadora. Certamente não teria feito museologia se já houvesse o curso de teatro que hoje existe, mas naquele ano ainda não existia. Eu já fazia teatro no sótão de uma biblioteca pública e mais tarde entrei ao mesmo tempo na faculdade de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo e no curso de Atuação Cênica da SP Escola de Teatro. Cancelei a matrícula da graduação após dois anos, quando concluí o curso técnico de teatro e entrei para Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde me formo agora.

Se conto tudo isso é para que entendam, que estou por muito tempo encruzilhada entre a cena e o arquivo, entre a literatura e as artes visuais, e aqui estamos no curso de Estética e Teoria do Teatro, sítio que hoje felizmente atende a todos esses interesses e neste projeto que apresento, pude dar vazão a essas pulsões. Sou uma pessoa de teatro sim, mas sou uma pessoa de museu. Tenho experiências sensíveis em espaços expográficos que me transformam tanto quanto a cena. Sofri por achar que não me encaixava em nada, pois não ficaria feliz em um curso de história da arte somente, nem o teatro por si só me interessa se não se interessar pelas caixas brancas além das pretas. O curso de Estética e Teoria do Teatro me mostrou que também posso criar caminhos fora das caixas, sejam quais forem. A escrita é um desses caminhos e para escrever com franqueza preciso confiar que algo aqui está acontecendo. Essa escrita que anuncia nada, nem explica, que apenas é. Assim ergo novos monumentos, encantando as palavras.

Através de Araceli conheci Ana Lídia, de Ana Lídia fui parar em Ágatha, passei por Tuíra Kayapó, Dorothy Stang e Marie Laveau. O horror aumentava, o ódio aumentava e eu não tinha como fazer caber a tristeza. Foi então que escrevi seus nomes. Com tinta vermelha sobre papéis brancos. Em uma semana, eu tinha 200 nomes. Passei então a sorteá-los e usar minha única arma possível para reverter o ódio: a escrita. Assim, nasceu o livro Evangelho da Terra - Segundo a Serpente, e suas 182 notas de rodapé, uma fábula narrada por uma serpente sobre a fuga de Errante pela Terra Sem Lei, caçada dadas as proibições impostas pelo Imperador à sua existência. O livro é o segundo da Tetralogia Diluviana e segue Dilúvio Mudo - Uma Arcana Jornada, lançado em 2016 pela Editora Urutau.

Este trabalho significa para mim um legado. Por aquelas que morreram sem serem lembradas, vingadas. Pela minha linhagem analfabeta que vai me ver graduada em uma universidade pública. Por aqueles e aquelas colegas de curso que, sobrecarregadas por jornadas intensas de trabalho e parcas condições de permanência em um curso de arte integral da zona sul do Rio de Janeiro, evadiram. Para aquelas e aqueles que permaneceram, mas não se encaixam no modus operandi acadêmico possam ver em meu trabalho uma possibilidade de cumprir as formalidades sendo fiéis a si mesmas e ao caminho artístico que porventura lhes pareça incomunicável institucionalmente. Como uma segunda pele por debaixo da pintura, discorro sobre conhecimentos não decifráveis segundo as lógicas de conhecimento correntes ocidentalmente. Quando falo de orixás e catiços, vejam, eu não li sobre isso em lugar algum. São eles que me recebem em casa quando chego, são eles que conversam e gargalham comigo nas rodas de tambor, seguimos o awô[2] sagrados das casas e não escrevemos os segredos. O verdadeiro dendê das casas de santo, entendam, não é ditado por qualquer estudioso que seja, em livro qualquer que seja; ele é feito para encantar-se, oralmente, de geração em geração, sob a própria hierarquia e preceitos de iniciação. Livros podem ser queimados. Palavras não. É somente por isso que que ainda estamos aqui. Porém, guardo com fervor as palavras de Glauber (Rocha) "Invertar-te ia, antes que os outros te transformem num mal-entendido". Para não virarmos demônio no idioma dos letrados, precisamos versar sobre nós mesmos, contar nossas versões das histórias. Quando escrevemos, eu e os outros que se propõem a estar nessa encruzilhada entre a escrita e o indizível, sabemos que uma parte segue resguardada em mistério, entendida de forma não racional; decerto há a poesia, que toca com muito mais frequência esse lugar sem explicação, assim como a música. Mesmo assim, há sempre o risco de grandes mal-entendidos.

Muito bonito. Para que escrever então? Para "entrar em todas as estruturas e sair de todas elas", como disse Caetano[3] é proibido, proibir, e meu objetivo é falar de Novarina e Sete Encruzilhadas, ao mesmo tempo, na mesma frase. Falar inglês americano e yorubá fluminense, no mesmo dia. Pisar no chão da Urca e no chão de Queimados com os mesmos pés descalços. Minha avó, Dui, foi pioneira na Paraíba comprando a própria alforria e sendo comerciante de rua, ergueu a própria casa de farinha. Me contam que não gostava de usar sapatos. Há uma leitura de mundo, saibam, que não é feita pelos olhos nem pode ser contada em livros. Se escrevo é, pois, o encanto acontece quando palavras são ditas em voz alta. Cantadas. Esse é o significado de encantar. Pois eu sou livre e ando descalça onde quero para que meus pés leiam o território. Pois nasci alforriada e este monumento em verso, cena e som, é minha própria casa de farinha.


[1] Mais sobre o projeto de reestruturação está disponível em https://www.archdaily.com.br/br/880975/parque-da-juventude-paisagismo-como-ressignificador-espacial. Acesso em 10/06/2021.

[2] Sobre o termo em específico ver CARNEIRO ARAÚJO, 2012.

[3] Discurso registrado disponível em https://tropicalia.com.br/identifisignificados/e-proibido-proibir/discurso-de-caetano


I. Evangelho da Terra: poética do desterro 

         Escrevo esse texto para me despedir da graduação em Estética e Teoria do Teatro, para dar fim ao Evangelho da Terra por hora, pelo menos nesse período do processo. Tentei escrever durante o dia doze vezes sem sucesso; pois em verdade vos digo que escrevo a décima terceira tentativa, em uma madrugada de junho, vigiada por uma lua minguante, uma fatia laranja sobre o mar que vejo do Vidigal.

Segundo o dicionário[1], desterro pode significar

Deportação; ação ou efeito de desterrar, de expulsar da pátria.

O local em que habita essa pessoa que foi expulsa.

Ação de sair de seu domicílio por uma ordem legal ou por vontade própria.

[Jurídico] Ordem legal que obriga uma pessoa a permanecer no local para o qual foi deportada.

[Por Extensão] Estado ou condição de quem vive de maneira isolada.

[Por Extensão] Solidão; sensação de isolamento.

Lugar muito calmo ou inabitado.



Preciso que saibam que escrevo exilada no alto de um morro, que saí da minha cidade natal, São Paulo capital, para a Itália, para a Alemanha, para o Paraguai, até que finquei o pé aqui nessa cidade, onde me encontro isolada. A errância é o mote principal desse trabalho, seguido da vingança, pelas mortes, aos montes, injustificáveis. O que o desterro, as mortes, a terra plana, um fantasma dinamarquês, Oyá e eu temos em comum, é o que tentarei contar a seguir.


[1] Disponível em https://www.dicio.com.br/desterro/. Acesso em 04/06/2021.

          A atividade teatral é recriminada pela igreja católica na Idade Média. Os textos em geral são tirados de acesso popular; o desejo por conhecimento passa a ser considerado pecado - biblicamente, a serpente da árvore do conhecimento que seduz Eva é o arauto da maldição de sua carne. O teatro como instituição deixa de existir para brotar em manifestações mambembes, nos ditos teatrantes, como os chama Cesare Molinari (2010), andarilhos que aportam com suas carroças e ocupam as ruas, as praças, nas festas; uma sobrevivência cultural pagã que se mantém na chamada era das trevas. A dramaturgia aqui, obedece a lógicas diferentes da dramaturgia clássica greco-romana por exemplo, na qual há o encadeamento de ações em trama; as personagens entram aleatoriamente e seus quadros podem ser retirados ou mudados sem prejuízo. Os conflitos tampouco são desenvolvidos e não importam os antecedentes das personagens ou seu destino posterior. Os mistérios do final da Idade Média são montados em estações, mansões, palcos para cada cena que acontecem em simultaneidade. Não há o objetivo de criar a ilusão de progressão dramática, pois a história da humanidade já está definida de antemão, sob o controle do logos divino, eterno e perfeito.

A peça anônima "Auto da moralidade de todo mundo" tem personagens alegóricas e abstratas: sentimentos, entidades coletivas, não há noção de indivíduo. O texto de Gil Vicente, "O Auto da Barca do Inferno" (VICENTE, 1996) está fora do período designado como medievo, mas trabalha com a estrutura medieval em geral. Em ambos, a morte é vista como castigo, como prestação de contas; as peças têm função moralizante, a defesa da virtude em vida que pode salvar da danação eterna. "Nenhuma época impôs a toda população a ideia da morte continuamente e com tanta ênfase como o século XV" diz Huizinga (2010). Contudo a ambiguidade da figura sedutora do Diabo complexifica o que seria fundamentalmente maniqueísta, adicionando nuances que permitem a diversão e certa identificação. A defesa do desejo carnal e intelectual e da rebeldia em relação à propriedade feudal são marcas diabólicas, como pontua José da Costa (1994). Certamente, diante de um clero abastado que acumula terras através de seu séquito de sacerdotes celibatários, ou seja, que não geram herdeiros, era interessante incutir socialmente a ideia de que a vida na terra é passageira e o caminho para a salvação é o desapego dos bens (bens esses que acumularam de tal modo a garantir seu poder até os nossos dias). "Nada pode parecer impossível de mudar" disse Bertold Brecht (1982) no século XX, certo de que essa convicção é única capaz de fomentar transformações sociais estruturais (ele mesmo, que também usa em suas peças quadros de cena mutáveis, montáveis). É justamente o pensamento oposto que impera no medievo: tudo já está, quem é servo sempre será, quem é rei assim há de continuar, e a vida após a morte é o único caminho possível. Ora, quem acredita estar de passagem não se opõe, não questiona, apenas espera. Deixa seus desejos para quando o protocolo permite, o carnaval. Logo depois entra em quaresma para purgar-se, entra em punição ao confessar-se, e espera pela morte (que nessa época, repleta de pestes e com recursos medicinais e higiênicos escassos, não demorava a chegar).

Pois se não é, vejam, assustadora a semelhança do medievo com o Brasil de 2021, que mal cicatrizou uma ditadura militar e já caiu de cabeça em uma pandemia virulenta que progride violentamente, desgovernado por um déspota e sem carnaval. Esse Brasil, o cemitério indígena com quinhentos anos de genocídio vermelho contínuo, banhado pelo mar calunga grande, avermelhado pelo sangue dos negros, esse mesmo Brasil, é onde me encontro ao mesmo tempo isolada e exilada agora. É por aí que se explica a minha obsessão com os mistérios medievais, salvo o oráculo tarológico que encaixei entre o logos divino e o acaso, embora em meu entendimento ambos sejam face da mesma moeda. Penso que a itinerância que prevejo na peça é a estratégia para que tudo mude, a cada vez, a cada público. A protagonista é uma Errante pois penso que andarilhos e teatrantes são espécies que reencarnam e não desistem, que tipo insistente vejam, aqui estou, com a morte a espreita e as universidades públicas em queda. Aqui escrevo meu estatuto de vingança: Evangelho da Terra - Segundo a Serpente (porque o esquecimento é como nos matar novamente). O livro está sendo diagramado e será distribuído em breve, é agridoce, pois confesso, minha valentia some ao pensar nos valentões que podem me caçar justificando que primeiro, uso o nome de Deus em vão e que profano o Evangelho, e segundo, verão que cito nomes e datas de casos não concluídos até a última edição desse texto, ou seja, exponho assassinos, estupradores onde e quando mataram e violentaram. Eis que, como podem perceber, minhas madrugadas não são tranquilas. 


          Até o presente momento realizei a partir do Evangelho da Terra um livro, uma performance pública, uma escritura sonora, um texto dramatúrgico. Na ação coletiva que está em curso, envolvi seis atrizes na missão de serem as mestras de cerimônia da boca do inferno na Ocupação que prevejo. As Diabas, por enquanto, são pombas giras em audiovisual e, espero em breve, pós a peste, também em tê-las em cena, corpo e suor presenciais. Serão brincantes do meio do povo, venderão prendas, agirão com sensualidade e escárnio; como párias, mulheres do porto, ciganas, mulambas, todas, poderosas através do riso, ansiosas pela prata. 



Ainda estão em produção mais um vídeo com uma atriz acrobata e ela, a cena da V, da Vingança que estou ensaiando para a edição desse ano do Festival de Teatro Universitário, o FESTU. Como veem, ando espalhando como vento essa boa nova e como disse, temo represálias ou pior coisa. Me imagino em um julgamento absurdo no qual pela minha vida tenha que negar tudo o que disse. Mas vocês conhecem a história, eu vou virar como Galilei e dizer, bem baixinho: e pur se muove. Se muove!



CONTRA O ESQUECIMENTO | SOBRE A OBSESSÃO

            Gilda Brasileiro - Contra o Esquecimento é um documentário produzido entre Alemanha, Brasil e Suíça, dirigido por Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer. Os dois passaram dois anos acompanhando a trajetória de Gilda Brasileiro e mesclam fotografias de época feitas por Marc Ferrez com o registro da saga da pesquisadora e professora de geografia Gilda atrás história de uma estrada clandestina usada por traficantes de pessoas escravizadas no século 19, nas proximidades do Vale do Paraíba. Após uma busca incessante, ela encontra documentos relevantes, mas, na sua cidade, ninguém quer vasculhar o passado. O filme foi lançado em 2018 e foi exibido no Festival do Rio, onde o vi, acompanhada de Roberto e da própria Gilda para minha sorte. Eu estava estudando A Câmara Clara de Roland Barthes na época e estava interessada em como uma fotografia poderia "pungir" alguém, assim como a fotografia de Tuíra Kayapó em Altamira me pungiu. O filme foi uma importante referência nesse sentido, passei a confiar na palavra narrada sobreposta a imagens fixas para criar experiências com os textos do Evangelho da Terra influenciada por isso. Mas o motivo dessa referência encerrar esse trabalho, é a obsessão de Gilda com o Brasil no sobrenome; quando nada havia, sem credibilidade dos seus. Nada. Além de um impulso irreversível de justiça. Nada. Além da busca incessante por provas. Há uma cena em que ela encontra os documentos que comprovam a existência da Rota Dória. E ela chora. Sim, eu tenho fé nos encantos, eu confio no indizível. Porém, neste mundo, sem documentos não se justificam os processos.

Por isso este trabalho. Eu choro. Não há em minha linhagem registros de existência para além da terceira geração acima da minha, quer dizer que segundo as lógicas desse mundo de leis, podem dizer que não existimos, uma vez meus dois sobrenomes não levam a nada além de árvores dessa terra. Minha família cheia de Marias quando na verdade descendem de Dui, sem sobrenome. Porém, neste mundo, sem documentos não se justificam os processos. Então eu registro, escrevo, canto, crio contra o esquecimento, contra toda forma de opressão. Este documento será encerrado assim, com o testemunho dessa obsessão da Gilda e como testemunho da minha própria obsessão. Que não se encerra aqui.

Live com Marina Vianna no Festival Integrado de Teatro da Unirio| FITU 2020

Realização

Natalia Amoreira

 Atriz, cantora e autora. Formada em museologia pela Escola Técnica Parque da Juventude (2009), em atuação cênica pela SP Escola de Teatro - Centro de Formação das Artes do Palco (2011). Faz parte da Rede Cultural Luther King dirigida pelo maestro Martinho Galati desde 2011 atuando em diversos concertos por São Paulo, Itália e Paraguai. Em atividade artístico-pedagógica desde 2009, passando por instituições como SESC SP, Fábricas de Cultura, Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, Museu de Arte do Rio, Fundação Eva Klabin e Planetário do Rio. Em 2018 foi finalista do Slam Pequena África, concurso nacional de poesia falada promovido pela FLUP, a Festa Literária das Periferias, no Circo Voador. É graduanda em Estética e Teoria do Teatro pela UNIRIO. "Dilúvio Mudo - Uma Arcana Jornada" é seu livro de estreia lançado pela Editora Urutau em 2016. Seus mais recentes trabalhos foram "A Imperatriz" performance realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (2019) e a atuação no documentário "Mulheres Compositoras" de Dani Pinheiro (2021).

Orientação e colaborações docentes


Marina Vianna

Orientadora do projeto, Marina é formada em História, tem mestrado e doutorado no PPGAC-UNIRIO, é atriz e diretora. Atuou em trabalhos como A Falta que nos Move, FitzJam, Devassa, Medea- Obs, Entonces bailemos e O tempo não dá tempo. Foi dramaturgista e assistente de direção em Apropriação; colaborou na criação de O Maravilhoso Museu da Caça e da Natureza; produziu e dirigiu, com Diogo Liberano, o espetáculo A Santa Joana dos Matadouros, de Brecht - indicado a melhor direção e melhor espetáculo no prêmio Cesgranrio. Atualmente dirige o espetáculoonline Como devo chorá-los? um híbrido entre teatro, performance, cinema e artes visuais com sessões interativas de 27 de Abril a 2 de Maio, pelo site comodevochoralos.com.br 

Lizen Sá

Luiz é doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO, Mestre em História do Design Brasileiro e Bacharel em Design pela ESDI-UERJ. Especializou-se em design cultural, com desenvolvendo projetos para produções teatrais, shows, cinema e exposições, atuando como designer gráfico, cenógrafo e fotógrafo. É o atual diretor da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde leciona disciplinas relacionadas a Cenografia Teatral. De 2012 a 2016, atuou como Coordenador do Bacharelado em Cenografia e Indumentária. Em 2014, foi premiado com uma bolsa de estudos pela Comissão Fulbright para desenvolver sua tese de doutorado como pesquisador visitante na Columbia University, Nova Iorque, EUA. Luiz Henrique lecionou Cenografia na Universidade Cândido Mendes; Fotografia na Escola Superior de Desenho Industrial (UERJ); e Cenografia na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fez projeto gráfico para diversas produções teatrais, assim como capas de CD's e DVD's. Como cenógrafo, tem trabalho expoente em design para exposições, e realizou cenários para produções teatrais e musicais. É colaborador do cenógrafo brasileiro Helio Eichbauer desde 2004 em teatro, shows, balés e óperas, e fundou o estúdio de design Bigodes (www.bigodes.com.br).

Flora Süssekind

Flora Süssekind trabalha como professora associada no curso de Estética e Teoria do Teatro do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Com graduação, mestrado e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é autora, entre outros livros, de Tal Brasil, qual romance?, Literatura e Vida Literária, Cinematógrafo de Letras, Papéis Colados, A Voz e a Série e O Brasil nao é longe daqui. Tem focado seus estudos em historiografia literária e teatral, na cultura oitocentista brasileira, na produção cultural contemporânea, nas relações entre as artes e entre arte e técnica, e em formas diversas de intervenção crítica. 

EVANGELHO DA TERRA| MEMORIAL   Natalia Amoreira
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